Entrevista: Professor Dr. Ingo Wolfgang Sarlet

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*Colaborou para a presente entrevista o Defensor Público do Estado de São Paulo Tiago Fensterseifer (Doutorando em Direito Público pela PUCRS e autor da obra Defensoria Pública, Direitos Fundamentais e Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva, 2015).

 

Doutor em Direito pela Universidade de Munique. Estudos em Nível de Pós-Doutorado nas Universidades de Munique (bolsista DAAD), Georgetown e junto ao Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional (Munique), como bolsista do Instituto, onde também atua como representante brasileiro e correspondente científico. Pesquisador visitante na Harvard Law School (2008). Pesquisador Visitante como bolsista do STIAS-Stellenbosch Institute for Advanced Studies, África do Sul (2011). Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC/RS. Professor Titular nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da PUC/RS e Professor de Direito Constitucional da Escola Superior da Magistratura do RS (AJURIS). Professor Visitante (bolsista do Programa Erasmus Mundus) da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa, 2009) e Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2012). Professor do Curso de Mestrado em Direito Constitucional Europeu na Universidade de Granada. Coordenador do NEDF – Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Direitos Fundamentais da PUC/RS (Sistema de Grupos de Pesquisa do CNPq), vinculado ao Mestrado e Doutorado em Direito da PUC/RS. Autor, entre outras, das obras: A Eficácia dos Direitos Fundamentais (12ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015), Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988 (10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015) e Curso de Direito Constitucional (3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014), esta última em coautoria com Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero. Juiz de Direito de Entrância Final no Estado do Rio Grande do Sul.

 

APADEP Prof. Ingo, o Sr. é um dos grandes nomes do Direito Constitucional brasileiro atual. A sua obra doutrinária (em especial, os seus livros, já clássicos, A Eficácia dos Direitos Fundamentais e Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais na CF/88) é leitura obrigatória para todos que militam na defesa dos direitos fundamentais e influenciou de forma bastante marcante a formação jurídica no campo constitucional na última década (na verdade, desde a publicação da primeira edição do seu livro A eficácia dos direitos fundamentais, no ano de 1998), sobretudo em vista do que poderíamos denominar da “Nova Escola do Direito Constitucional Brasileiro” formatada após a Constituição Federal de 1988. Do universo acadêmico (da graduação à pós-graduação) à atuação concreta dos diversos operadores do Direito (Juízes, membros do Ministério Público e da Defensoria, advogados públicos e privados, etc.), contando com inúmeras citações das suas obras em decisões importantes dos nossos Tribunais Superiores (STF e STJ), o Sr. é um dos grandes responsáveis pela inserção do tema dos “direitos fundamentais” (e, em especial, dos “direitos fundamentais sociais”) na pauta acadêmica brasileira e, mais do que isso, no âmbito do nosso Sistema de Justiça (inclusive no polêmico debate sobre o controle judicial de políticas públicas, lembrando que o Sr. foi um dos especialistas ouvidos pelo STF por ocasião da histórica audiência pública realizada pela nossa Corte Constitucional para discutir a judicialização do direito à saúde, no ano de 2009). Por tudo isso, é uma grande honra para APADEP (representando os Defensores Públicos paulistas) o seu aceite para nos conceder esta entrevista, analisando o tema “Defensoria Pública, Acesso à Justiça e Direitos Fundamentais”. Para começarmos, com uma questão mais genérica e introdutória, como o Sr. vislumbra a correlação entre o papel institucional da Defensoria Pública, a proteção dos indivíduos e grupos sociais necessitados (ou vulneráveis) e os direitos fundamentais?

 

PROF. INGO W. SARLET – Primeiramente, gostaria de agradecer a gentileza das palavras que me foram dirigidas. É uma honra poder contribuir para um debate tão importante quanto esse, já que, ao fim e ao cabo, estamos tratando da proteção jurídica (e o acesso à justiça) daquela parcela na nossa sociedade mais carente e privada do acesso aos seus direitos fundamentais e a uma vida minimamente digna. Dito isso, vou tratar de colocar algumas premissas importantes para a nossa discussão. A proteção jurídica especial (e, portanto, reforçada) dispensada aos indivíduos e grupos sociais necessitados coloca-se como premissa na arquitetura normativa do atual Estado Social e Democrático de Direito delineado pela CF/88. O atual modelo de Estado Social (ou até mesmo Socioambiental, como referem alguns autores, notadamente para incorporar ao programa jurídico-constitucional os novos direitos de solidariedade, como é o caso, por exemplo, da proteção ecológica) edificado pela CF/88 é particularmente relevante para compreender o papel (e a função) que cumpre ao Estado (e, consequentemente, ao Direito) brasileiro exercer na proteção dos necessitados (ou vulneráveis). Superando a dimensão formal assumida pela liberdade e igualdade no Estado chamado Liberal de Direito, o Estado Social, para além de tal paradigma, encarrega-se também de assegurar e mesmo promover uma igualdade material ou substancial, assumindo como tarefa (inclusive em termos prestacionais) a equalização das relações sociais e, portanto, dispensando especial regime de proteção às pessoas tidas por necessitadas ou vulneráveis.

 

A criação da Defensoria Pública na CF/88 e a ampliação do acesso à justiça aos indivíduos e grupos sociais necessitados são expressão desse novo programa político-jurídico inaugurado em 1988. A Defensoria Pública não “caiu de paraquedas” no art. 134 da CF/88. Ela é um dos elementos chave de renovação do nosso Sistema de Justiça, o qual, inclusive, foi objeto de reformas constitucionais posteriores a 1988 que reforçaram ainda mais o regime constitucional da Defensoria Pública (vide, por exemplo, a EC 45/2004 e a EC80/2014). Ao reconhecer a desigualdade existente no âmbito comunitário, inclusive pelo prisma da privação no acesso aos bens e direitos sociais mais elementares, como infelizmente ocorre de modo recorrente em contextos sociais como o brasileiro, o Estado toma partido e atua positivamente para assegurar a inserção político-comunitária de todos os indivíduos. Em outras palavras, é reservado ao Estado o papel de criar estruturas e mecanismos próprios, tanto do ponto de vista organizacional quanto procedimental, capazes de efetivar políticas sociais inclusivas. Esse mesmo raciocínio aplica-se também ao Sistema de Justiça e em especial ao acesso ao mesmo. O Direito, nesse contexto, coloca-se como instrumento legítimo para operar essa equalização nas relações sociais. Assegurar proteção jurídica especial aos necessitados (ou vulneráveis) nada mais é do que reconhecer a desigualdade fática existente entre os diferentes indivíduos e grupos que integram a comunidade política estatal. Em outras palavras, ao tratar de forma desigual determinadas pessoas, por meio da assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados, o Estado nada mais faz do que assegurar a igualdade fática das mesmas no plano comunitário, tornando-as capazes de exercer com plenitude os seus direitos (especialmente aqueles dotados de fundamentalidade) e a sua cidadania. A Defensoria Pública representa, portanto, esse “movimento” do Estado no sentido de criar, tanto em termos organizacionais quanto procedimentais, políticas públicas inclusivas e capazes de operacionalizar o próprio princípio da igualdade na sua dimensão material, designadamente naquilo que constitui um dos principais esteios do Estado Democrático e Social de Direito: um direito a ter direitos fundamentais civis, políticos e socioambientais efetivos.

 

APADEPEm sua opinião, quais as razões que levaram a Assembleia Constituinte a consagrar a Defensoria Pública no programa político-normativo da CF/88?

 

PROF. INGO W. SARLET – As razões, em grande medida, já estão lançadas na resposta anterior. A Defensoria Pública é expressão desse novo constitucionalismo social e do modelo de Estado estabelecido a partir da CF/88. Num país em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, com um cenário socioeconômico tão desigual, a Defensoria Pública tem uma razão bastante significativa para existir, especialmente se os setores políticos estiverem efetivamente comprometidos com o projeto normativo delineado pela CF/88, uma vez que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º), além de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (I), “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (III).  No dispositivo constitucional de “abertura” do Título da Ordem Social, art. 193, está consignado que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. Ou seja, bem-estar, justiça social e vida digna estão no âmago do nosso texto constitucional, conferindo fundamento e legitimidade para a existência de instituição pública com o perfil da Defensoria Pública.

 

A Defensoria Pública, nesse sentido, dá contornos concretos ao objetivo constitucional estampado nos dispositivos constitucionais referidos, bem como à própria efetivação do extenso rol dos direitos fundamentais (com especial ênfase para os direitos sociais) consagrados na CF/88. Há, por assim dizer, relação visceral entre o regime constitucional de proteção social e o papel delineado constitucionalmente para a Defensoria Pública. Tal quadro normativo está fundado, inclusive, na perspectiva da justiça distributiva ou compensatória, na medida em que assegura proteção político-jurídica especial aos indivíduos necessitados e grupos sociais vulneráveis, de modo a alçá-los a um patamar de maior isonomia nas relações que travam com os demais particulares e com próprio Estado, preservando e mesmo promovendo o seu status de cidadão. Do contrário, a vulnerabilidade de tais pessoas ocasionada pela privação de direitos implicaria sua marginalização e exclusão social, bem como a total desconsideração da sua autonomia e condição moral e jurídica de sujeito de direitos e mesmo de cidadão na acepção plena do termo. A Defensoria Pública nada mais é do que um dos instrumentos eleitos pelo Constituinte de 1988, entre diversos outros, para fazer cumprir o seu programa político-normativo de um Estado Social (e Democrático) de Direito e conferir efetividade ao rol de direitos fundamentais consagrado na nossa Lei Fundamental. É claro que isso não significa que existam outras formas de assegurar o mesmo desiderato, o que revelam as experiências do direito comparado, mas o constituinte de 1988 aqui fez uma clara e vinculativa opção que deve ser levada a sério e devidamente efetivada.

 

APADEP – A assistência jurídica integral e gratuita trata-se de um verdadeiro direito fundamental de titularidade das pessoas necessitadas? Poderíamos até mesmo dizer que se trata de um direito que integra o conteúdo do direito-garantia ao mínimo existencial, conforme sustenta parte da doutrina (como a Professora Ana Paula de Barcellos, da UERJ) e até mesmo o STF (por ocasião do julgamento do AI 598.212, sob a relatoria do Ministro Celso de Mello)?

 

PROF. INGO W. SARLET – Que se cuida de um direito fundamental é, do ponto de vista da CF/88, algo inquestionável.  A CF/88, cabe frisar, rompeu com a tradição constitucional pretérita no que diz com a temática da assistência judiciária. Ao não mais utilizar tal nomenclatura, e sim assistência jurídica, consolidou novo regime constitucional para o tratamento da matéria, inserindo o direito fundamental à assistência jurídica no catálogo dos direitos fundamentais. À Defensoria Pública cabe justamente o papel de efetivar o direito fundamental de acesso à justiça daqueles indivíduos e grupos sociais que não dispõem de recursos próprios para fazê-lo por outros meios – ou mesmo que se encontre em condições especiais de vulnerabilidade por integrarem grupos sociais vulneráveis -, de modo a assegurar aos mesmos a tutela e promoção dos seus direitos, já que, de acordo com o Professor Luiz Guilherme Marinoni, “é evidente que não adianta outorgar direitos e técnicas processuais adequadas e não permitir que o processo possa ser utilizado em razão de óbices econômicos”. Pode-se afirmar que os direitos não passariam de tinta no papel sem um Sistema de Justiça – e também de instrumentos processuais – adequado para a sua efetivação em caso de violação ou ameaça de violação, tanto pela ação ou omissão de particulares quanto do próprio Estado. A criação, pela nossa Lei Fundamental de 1988, de uma instituição pública com tal objetivo, no caso a Defensoria Pública (art. 134) é expressão do reconhecimento de um direito fundamental das pessoas necessitadas à assistência jurídica (art. 5º, LXXIV), atendendo justamente ao preceito constitucional do acesso à Justiça (art. 5º, XXXV), concretizando e aprofundando o seu conteúdo normativo com o intuito de torná-lo efetivo.

 

Retomando alguns conceitos da Teoria dos Direitos Fundamentais, pode-se afirmar que há forte conexão entre os deveres de proteção (Schutzpflichten) do Estado e as perspectivas organizacional e procedimental, como duas facetas da perspectiva (ou dimensão) objetiva dos direitos fundamentais. A criação e implementação de estruturas organizacionais e procedimentos (judiciais e administrativos) por parte do Estado tem como fundamento o dever de proteção dos entes estatais para com os direitos fundamentais, tendo em vista que sua tutela adequada e efetivação demandam um conjunto de medidas tomadas no plano fático e estrutural do Estado, como, por exemplo, a criação de órgãos encarregados de promover políticas públicas de efetivação do direito fundamental ou de mecanismos judiciais e administrativos capazes de afastar qualquer violação ao seu âmbito de proteção. Se tomarmos como exemplo o direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita de titularidade das pessoas necessitadas, consolidado nos arts. 5º, LXXIV, e 134 da CF/88, pode-se dizer que a criação e estruturação da Defensoria Pública – nas esferas estadual e federal – está atrelada à perspectiva organizacional de tal direito, ao passo que o reconhecimento da legitimidade da Defensoria Pública para a propositura da ação civil pública – consagrada no art. 5º, II, da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.437/85) e no art. 4º, VII, da LC 80/94 – está vinculada à perspectiva procedimental do mesmo direito fundamental.

 

Quanto à segunda parte do questionamento formulado, cabe assinalar que o direito-garantia fundamental ao mínimo existencial, ou seja, o direito às condições materiais mínimas para uma vida digna – em termos de direitos sociais, como é o caso, a título ilustrativo, da saúde básica, da assistência social, da educação fundamental – se constitui, de certo modo, em pressuposto material para o exercício dos demais direitos (fundamentais ou não), resultando, em razão da sua essencialidade, em um “direito a ter e exercer os demais direitos”. Sem o acesso a tais condições existenciais mínimas, não há que se falar em liberdade real ou fática, quanto menos em um padrão de vida compatível com a dignidade da pessoa humana. Em linhas gerais, o acesso à justiça ou mesmo o próprio direito fundamental à assistência jurídica opera como instrumento de efetivação dos direitos que integram o mínimo existencial, embora não apenas dos direitos que integram a noção de mínimo existencial, pois a Defensoria Pública e a assistência judiciária também socorrem àqueles que demandam na seara cível, etc. Embora o acesso ao Poder Judiciário não seja em si um típico direito social, pois em causa, reitero, não está apenas a efetividade de direitos sociais, a assistência jurídica reservada aos necessitados sim cumpre a função de um direito social típico, pois busca assegurar a igualdade material no plano do acesso ao sistema de Justiça. Não é à toa que se chama o direito fundamental à assistência jurídica de titularidade dos necessitados como “direito a ter direitos” ou “direito a ter direitos efetivos”. O renomado jurista italiano Luigi Ferajoli chega a denominar a “defesa pública” realizada pela Defensoria Pública no âmbito penal como uma “metagarantia”. Em outras palavras, aproveitando a ideia de Ferajoli, pode-se afirmar que a assistência jurídica é uma espécie de “garantia guarda-chuva”, catalisadora das inúmeras garantias penais e processuais penais elencadas no rol do art. 5ª da CF/88. Como dito antes, é uma garantia para assegurar a efetividade das demais garantias (e direitos) constitucionais. E esse raciocínio não se limita à esfera penal. É por essa razão que a assistência jurídica deve ser compreendida como um direito fundamental integrante do mínimo existencial ainda que a sua natureza seja um pouco diversa dos demais direitos que o conformam, dada a sua feição de instrumento para a efetivação dos demais direitos.

 

Por tal razão, por força do direito fundamental à assistência jurídica, dado ser integrante do conteúdo do mínimo existencial, conformam-se inclusive posições jurídicas subjetivas passíveis de serem reivindicadas perante o Poder Judiciário, tanto na hipótese de omissão quanto de atuação insuficiente do Estado. Esse, cabe frisar, foi o entendimento do Min. Celso de Mello na decisão referida na pergunta formulada (e, antes dele, também pelo Ministro Ayres Britto no julgamento da Ação Cautelar n. 2672, ao impor ao Estado do Rio Grande do Sul a obrigatoriedade da presença de Defensor Público em plantão judiciário de final de semana. Não por outra razão, a Professora Ana Paula de Barcelos, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, na sua obra A eficácia jurídica dos princípios constitucionais, defende o entendimento de que seria plenamente possível ao Judiciário, no âmbito de uma ação coletiva, fixar prazo para que o Poder Público (estadual ou federal) pratique os atos necessários à instituição da Defensoria Pública, inclusive pena de responsabilização do agente por descumprimento de decisão judicial.

 

APADEP – O que o Sr. pode nos destacar a respeito da atuação da Defensoria Pública em defesa das diferentes dimensões (ou gerações, como preferem alguns doutrinadores) de direitos fundamentais (liberais, sociais e ecológicos) das pessoas necessitadas?

 

PROF. INGO W. SARLET – A Defensoria Pública exerce um papel constitucional essencial na tutela e promoção dos direitos humanos e fundamentais de todas as dimensões, de titularidade das pessoas vulneráveis ou necessitadas, pautando-se, inclusive, pela perspectiva da integralidade, indivisibilidade e interdependência de todas elas. Em outras palavras, assim como a Defensoria Pública atua na tutela dos direitos liberais (ou direitos civis) das pessoas necessitadas, conforme se verifica especialmente no âmbito da defesa criminal e das ações cíveis na área da família, movimenta-se também, e de forma cada vez mais expressiva, no sentido de tornar efetivos os seus direitos sociais, o que se registra, por exemplo, nas ações individuais e coletivas que reivindicam prestações do Estado nas áreas da saúde (medicamentos e tratamentos médicos), da educação (vagas em creche e escolas públicas) e da moradia (ações e defesas de natureza possessória). Nesse cenário, com o surgimento dos direitos ecológicos, automaticamente a tarefa constitucional de zelar por eles é atribuída à Defensoria Pública, em razão de que aos indivíduos e grupos sociais necessitados também deve ser garantido o desfrute de suas vidas em um ambiente saudável, equilibrado, seguro e, portanto, digno. Somente com o respeito aos seus direitos fundamentais – de todas as dimensões – a dignidade de tais pessoas restará devidamente protegida, nos estritos termos ditados pela nossa ordem constitucional (art. 1º, III, da CF/88) e também pela Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (art. 3ºA, I, da LC 80, 94, com redação dada pela LC 132/2009).

 

De modo a reforçar tal entendimento e para não deixar pairar qualquer dúvida sobre a abrangência da legitimidade da Defensoria Pública para a defesa e promoção dos direitos fundamentais de todas as dimensões, a LC 132/2009 fez consignar no seu art. 4º, inciso X, entre as suas funções institucionais, a tarefa de “promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela”. Aliás, trata-se de dispositivo inédito na legislação brasileira, ao alinhar de forma integrada as diferentes dimensões de direitos fundamentais.

 

Diante da violação (ou ameaça de violação) de direitos fundamentais e da dignidade de pessoas em situação de vulnerabilidade, a Defensoria Pública estará legitimada a atuar, em termos individuais e coletivos (extrajudicial e judicialmente), no sentido de fazer cessar tal situação degradadora dos valores republicanos. Soma-se ao disposto na LC 132/2009, a nova redação do art. 134 da CF/88 levada a efeito pela EC 80/2014, estabelecendo que a “Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.”

 

APADEP – Como o Sr.  Avalia o reforço do regime constitucional da Defensoria Pública assegurado recentemente por meio da EC 80/2014?

 

PROF. INGO W. SARLET – A EC 80/2014 segue no caminho de fortalecimento do regime constitucional da Defensoria Pública inaugurado pela Emenda Constitucional 45/2004 (Reforma do Judiciário). A nova redação do caput art. 134 não deixa margem para dúvidas a respeito da amplitude de atribuições da Defensoria Pública, ao assinalar que lhe incumbe, “como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal”. Além de colocar a Defensoria Pública como “expressão e instrumento do regime democrático”, resultou consagrado no texto constitucional a sua função primordial de “promoção dos direitos humanos”, em sintonia com o que assinalamos na resposta anterior.

 

APADEP – Em sua opinião, qual a amplitude do conceito de necessitado ou vulnerável, como caracterizador da titularidade em relação ao direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita?

 

PROF. INGO W. SARLET – A Defensoria Pública é uma instituição relativamente nova, de tal sorte que sua identidade institucional ainda está em fase de construção no âmbito do nosso Sistema de Justiça.  Nessa perspectiva, ela deve se manter fiel o máximo possível ao seu objetivo constitucional maior que é a proteção dos pobres, ou seja, daqueles dotados de carência econômica. No entanto, colocada essa premissa, me parece ser possível a ampliação do conceito de necessitado para contemplar também aqueles grupos sociais vulneráveis, especialmente se focarmos na atuação coletiva da Defensoria Pública, tanto em termos judiciais quanto extrajudiciais. Portanto, para além da perspectiva estritamente econômica que assume a condição de característica essencial da assistência jurídica prestada no plano individual, é importante, a meu ver, estender o conceito de necessitado no contexto mais amplo de uma vulnerabilidade existencial e do próprio tratamento diferenciado que recebem da ordem jurídica determinados grupos em função de sua vulnerabilidade não necessariamente econômica, tais como crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas com deficiência, etc. É bem verdade, todavia, que, muitas vezes, sobretudo diante da desigual realidade social brasileira, a vulnerabilidade econômica se somará a outras formas de vulnerabilidade existencial, potencializando ainda mais o grau de vulnerabilidade e privação de direitos de certos indivíduos e determinados grupos sociais.

 

Seguindo a normativa internacional vigente no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, editou-se o documento intitulado Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condições de Vulnerabilidade, aprovado no âmbito da XIV Conferência Judicial Ibero-Americana (Brasília, 2008). O referido diploma, salvo melhor juízo, contribui para elucidar o conceito de necessitado, ao estabelecer como pessoas em condição de vulnerabilidade aquelas “que, por razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o Sistema de Justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico”. Do mesmo documento, consta que poderão constituir causas de vulnerabilidade, entre outras, as seguintes: a idade, a incapacidade, a pertença a comunidades indígenas ou a minorias, a vitimização, a migração e o deslocamento interno, a pobreza, o gênero e a privação de liberdade. De outra parte, o conceito de pessoas em condição de vulnerabilidade, por sua vez, não difere substancialmente do conceito de pessoas necessitadas, especialmente se tomarmos o seu sentido mais amplo, não se restringindo, portanto, apenas à perspectiva econômica.

 

No plano normativo nacional, a ampliação do conceito de necessidade (ou pessoa necessitada) resultou consagrado no art. 4º, XI, da LC 80/94, com as alterações trazidas pela LC 132/2009, ao determinar que cabe à Defensoria Pública “exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado”. Os grupos sociais vulneráveis são integrados por indivíduos e grupos de pessoas que são destinatários, em virtude de critérios eleitos pelo legislador, de uma especial proteção jurídica incumbida ao Estado, independentemente da configuração da sua carência econômica. O “rol” de grupos sociais vulneráveis, por certo, é apenas exemplificativo, como, inclusive, sugere o inciso XI do art. 4º da LC 132/2009, ao enunciar no seu final: “e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado”.

 

APADEP – Qual o papel que a Defensoria Pública tem a cumprir no campo dos direitos sociais, tomando por base o atual cenário que temos hoje de “judicialização” dos direitos sociais (em especial, no campo da saúde e da educação)? Como a Defensoria Pública deve se colocar diante desse cenário?

 

PROF. INGO W. SARLET – A falta de acesso da população pobre aos seus direitos fundamentais sociais infelizmente tem sido recorrente na nossa história política e realidade socioeconômica, caracterizando, na grande maioria das vezes, a omissão dos entes federativos em atenderem de modo minimamente satisfatório a tais demandas sociais, como ocorre, por exemplo, no caso da saúde, da educação, do saneamento básico, da assistência social e da moradia. Diante dessa realidade, está posta a possibilidade do controle judicial a ser efetuado pela Defensoria Pública nas hipóteses em que o Estado se omitir ou atuar de forma insuficiente na seara das políticas públicas sociais. Para além das ações individuais a Defensoria Pública, com base especialmente na reforma e reforço de seu papel institucional já demonstrado nas respostas anteriores, pode e deve operar na seara da efetividade dos direitos sociais da população carente de forma coletiva, potencializando a defesa dos seus direitos e a ampliação do seu acesso à justiça, em sintonia com o caminhar da melhor e mais arejada doutrina processual e constitucional.

 

A Defensoria Pública é, portanto, um ator fundamental (embora, por evidente, não o único ator relevante) na temática da judicialização dos direitos sociais, especialmente considerando o público beneficiário da assistência jurídica prestada pela instituição. No entanto, entendo que a Defensoria Pública, até como política institucional, deve fazer tudo o que estiver a seu alcance para a composição extrajudicial de tais conflitos com os entes públicos, tentando, sempre que possível, evitar o ingresso de ações judiciais. Dada a sua natureza, de certa forma, “deformadora” do regime democrático, o controle judicial de políticas públicas, de um modo geral, devem ser vistos como a última opção, sendo acionada a via judicial somente quando a solução extrajudicial fracassou. Mas, não sendo viável tal solução administrativa, é totalmente legítima a atuação da Defensoria Pública, tanto por meio de ações individuais quanto coletivas, no sentido de reivindicar judicialmente direitos sociais em favor das pessoas necessitadas, ainda mais em face da lacuna de atuação de outros órgãos ou mesmo da sociedade civil organizada.

 

APADEP – A atuação coletiva da Defensoria Pública seria um caminho desejável no campo dos direitos sociais?

 

PROF. INGO W. SARLET – Desejável, não, necessário, dadas as circunstâncias. Desejável seria que os direitos sociais básicos estivessem suficientemente assegurados para todos. Esse cenário, inclusive, é reforçado pelo próprio reconhecimento da legitimidade da Defensoria Pública para a propositura da ação civil pública levada a efeito pela Lei 11.448/2007, que inseriu a Defensoria Pública no rol do art. 5º da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).

 

APADEP – O Sr. tocou de passagem na questão da legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ação civil pública. Como o Sr. se posiciona em face da questão, considerando a ADI 3.943 proposta pela CONAMP (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público) impugnando essa legitimidade, a qual foi recentemente julgada improcedente, de forma unânime, pelo STF?

 

PROF. INGO W. SARLET – Como destacado na pergunta, o STF “virou a página” no que diz respeito ao tema, afastando, de forma unânime, qualquer inconstitucionalidade que pudesse ser levantada em face do inciso II do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública. A meu ver (e a doutrina processual, sobretudo aqueles que tratam do processo coletivo, sinalizam nesse sentido), a concentração de poder num determinado ente estatal é contrária ao ideal democrático-participativo aplicado ao Sistema de Justiça. É salutar a qualquer sistema democrático que sempre exista um aparato de controle da atuação do poder público, bem como que se estimule a criação de instrumentos tendentes à sua descentralização e transparência. Esse me parece foi o caminho trilhado pelo legislador infraconstitucional ao incluir a Defensoria Pública no rol do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública, considerando, especialmente, o fortalecimento e ampliação do acesso à justiça das pessoas necessitadas. As ações e defesas judiciais individuais, assim como a atuação extrajudicial, a mediação e prevenção de conflitos, a educação em direitos, entre outras práticas realizadas cotidianamente pelos Defensores Públicos, são e vão continuar a ser a essência da atuação institucional da Defensoria Pública. A legitimidade para a ação civil pública, nessa perspectiva, tem apenas a função de ser mais um instrumento de trabalho do Defensor Público para potencializar e levar a um número cada vez maior de pessoas necessitadas a tutela dos seus direitos e, acima de tudo, o resguardo da sua dignidade, notadamente quando estiverem em jogo os seus direitos fundamentais.

 

Para tratar da questão, me parece pertinente o exemplo da tutela coletiva dos direitos sociais. Há plena identidade entre os usuários dos serviços públicos prestados pelo Estado, por exemplo, na área da saúde e da educação, e as pessoas necessitadas assistidas pela Defensoria Pública. Por isso, a omissão ou atuação insuficiente do Estado na promoção de políticas públicas em tais áreas sociais reflete diretamente na violação a direitos fundamentais de pessoas necessitadas, adotando aqui o conceito estrito de necessitado econômico. Muito embora a atuação individual da Defensoria Pública represente parte expressiva das medidas extrajudiciais e judiciais adotadas na matéria (como, por exemplo, pedidos individuais de vaga em creche e fornecimento de medicamentos), em outras situações poderá ocorrer a necessidade (como remédio processual mais eficaz) de uma atuação de índole coletiva. Muitas vezes, os direitos sociais também podem assumir a forma de direitos difusos (além de individuais homogêneos e coletivos em sentido estrito), revelando o interesse de um grupo indeterminado de pessoas, como na questão dos serviços públicos essenciais (por exemplo, no campo da saúde e do ensino públicos).

 

A reivindicação judicial dos direitos sociais legitima-se justamente em decorrência da hipossuficiência econômica ou organizacional dos indivíduos e grupos sociais privados de tais direitos, o que conduz tais demandas diretamente à atuação institucional da Defensoria Pública. Por fim, destaco as palavras da Ministra Cármen Lúcia, relatora da referida ação, ao afirmar que “a ninguém comprometido com a construção e densificação das normas que compõem o sistema constitucional do Estado Democrático de Direito interessa alijar aqueles que, às vezes, tem no Judiciário sua última esperança, pela impossibilidade de ter acesso por meio dessas ações coletivas”. Dito isso, considero que a nobre e essencial atuação do Ministério Público, que há de ser reconhecida, enfatizada e elogiada, não afasta a atuação concorrente e complementar da Defensoria Pública e também não deslegitima a atuação autônoma da sociedade civil organizada, de modo a propiciar um sistema de acesso à justiça amplo e preferencialmente isento de lacunas. O ideal seria aqui trilhar o caminho institucional da cooperação e integração.

 

APADEP – Por meio da EC 80/2014, mais precisamente em vista da inserção do art. 98 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), resultou consagrado que “no prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais (§ 1º)”, atendendo-se, prioritariamente, “as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional (§ 2º). Com base em tal previsão constitucional, haveria um dever constitucional conferido ao Estado de realização progressiva do direito fundamental à assistência jurídica aos necessitados? Seria passível de controle judicial eventual omissão ou atuação insuficiente dos Poderes Legislativo e Executivo (tanto federal quanto estaduais) em relação a tal dispositivo constitucional?

 

PROF. INGO W. SARLET – Não é uma resposta fácil. Mas, sem dúvida, trata-se de norma constitucional com força normativa e eficácia vinculante em relação aos Poderes Legislativo e Executivo tanto federal quanto estaduais. Se tomarmos como parâmetro a teoria do mínimo existencial e a inclusão do direito à assistência jurídica no seu conteúdo, inclusive como o fez o STF nas duas decisões citadas anteriormente, não há dúvida que seria possível sustentar a possibilidade de tal judicialização. As razões jurídicas para tal entendimento seriam as mesmas já lançadas anteriormente quando tratamos do regime jurídico do direito fundamental à assistência jurídica, muito embora se possa discutir quanto ao modo de construir eventuais demandas judiciais e a forma de decisão e cumprimento dos comandos judiciais.

 

APADEP – A Presidência da República interpôs, recentemente, a ADI 5.296 contra a EC 74/2013, que assegurou “autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária” à Defensoria Pública da União. Diante de tal cenário, seria possível alegar a incidência da garantia da proibição de retrocesso no caso em questão, tomando por premissa a tutela dos direitos fundamentais das pessoas necessitadas?

 

PROF. INGO W. SARLET – A autonomia (funcional, administrativa e financeira) foi conferida à Defensoria Pública pela Emenda Constitucional n. 45/2004, a partir da nova redação dada ao art. 134, mais precisamente no seu § 2º. Isso reflete de forma bastante significativa na tutela dos direitos fundamentais, especialmente no campo dos direitos sociais, pois permite maior liberdade e independência na atuação dos Defensores Públicos nas demandas contra o Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), como é a praxe nas demandas que reivindicam prestações sociais (ex. medicamento e tratamento médico, moradia – quando envolve ocupação de áreas públicas ou mesmo construção de moradias populares pelo Estado -, vagas em creches e escolas, transporte gratuito, saneamento básico, etc.). O mesmo ideário normativo delineado no § 2º do art. 134 da CF/88 foi reproduzido, em parte, no art. 4º, § 2º, da LC 80/94, com redação conferida pela LC 132/2009, ao determinar que “as funções institucionais da Defensoria Pública serão exercidas inclusive contra as Pessoas Jurídicas de Direito Público”. Mais recentemente, por meio da EC 74/2013, também foi assegurada à Defensoria Pública da União a mesma autonomia constitucional que detinham as Defensorias Públicas Estaduais, a qual agora é objeto de impugnação pela ADI 5296.

Novamente, como feito na resposta anterior, vou tentar explorar a questão (e a importância da autonomia) à luz da atuação da Defensoria Pública no campo dos direitos sociais. Para elucidar um pouco mais a temática, mirando questões práticas, é importante pontuar a diferença institucional entre as Procuradorias (federal, estaduais e municipais) e a Defensoria Pública. Muito embora seja legítima a defesa de alguma autonomia também para as procuradorias, até para que posam exercer uma verdadeira Advocacia de Estado (e não mera Advocacia de Governo), as mesmas atuam, em linhas gerais, na defesa do Estado nos diversos planos federativos. A título de exemplo, nas ações que reivindicam judicialmente direitos sociais, as procuradorias encarregam-se de fazer a defesa dos entes estatais, antagonizando com a atuação da Defensoria Pública, que visara à efetivação dos direitos sociais dos indivíduos e grupos sociais necessitados, promovendo ações judiciais em defesa de tais pessoas (individual e coletivamente). Em outras palavras, os Procuradores atuam em favor dos entes estatais; os Defensores Públicos, das pessoas necessitadas (ou vulneráveis).

Para exemplificar a situação e caracterizar a importância da autonomia institucional, pode-se fazer referência aos Estados onde a Defensoria Pública está – ou esteve – vinculada à estrutura do Poder Executivo. Tal realidade, como ocorria no próprio Estado de São Paulo antes da criação da Defensoria Pública (através da Lei Complementar Estadual n. 988/06), fazia com que o serviço público de assistência jurídica fosse prestado pela Procuradoria de Assistência Judiciária, ou seja, órgão integrante da Procuradoria do Estado. Assim, em uma hipotética ação civil pública movida contra o Estado de São Paulo para a ampliação de leitos hospitalares, haveria, de um lado da relação processual, um Procurador do Estado subscritor da referida ação civil pública e, do outro, um também Procurador do Estado na defesa do ente estatal, sendo ambos subordinados ao mesmo “chefe” institucional. A situação descrita, como se pode concluir facilmente, é incompatível com o regime constitucional delineado para a Defensoria Pública e a prestação do serviço público de assistência jurídica, comprometendo sobremaneira o livre desempenho, de forma autônoma e independente, das suas funções institucionais. A autonomia institucional, em se tratado da tutela e promoção de direitos sociais (mas o mesmo raciocínio vale para todas as áreas), é peça fundamental para o bom desempenho das suas atribuições institucionais, tendo sempre em vista o enfrentamento das mazelas sociais que afligem a população necessitada e a recorrente omissão ou atuação insuficiente dos poderes públicos.

Assim, é possível afirmar que a ADI 5.296 revela, em alguma medida, a vontade política de afastar a Defensoria Pública do controle judicial de omissões e atuações insuficientes (tomado o parâmetro estabelecido pelo princípio da proporcionalidade) perpetradas pelo Poder Executivo (em todas as esferas federativas). Sem avançar mais na questão – por sinal, tão bem colocada e analisada em parecer do ilustre Prof. Daniel Sarmento elaborado a pedido da Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) -, seriam essas as minhas considerações.

 

APADEP – Prof. Ingo, o Sr. teria alguma mensagem ou consideração final a fazer?

 

PROF. INGO W. SARLET – A falta de acesso da população pobre – e, portanto, vulnerável – aos seus direitos fundamentais e, acima de tudo, a uma condição de vida digna, por sua vez, tem sido recorrente na nossa história política e realidade socioeconômica. O mesmo ocorre no tocante à prestação do serviço público de assistência jurídica integral e gratuita às pessoas necessitadas, com a ausência de Defensorias Públicas efetivamente existentes e estruturadas em alguns Estados brasileiros. Como ocorre no próprio Estado de São Paulo, o mais rico da Federação brasileira, e também no âmbito federal, ou seja, no caso da Defensoria Pública da União, o número de Defensores Públicos é absolutamente insuficiente para atender de forma minimamente satisfatória a demanda da população necessitada. Tal situação implica negar aos indivíduos e aos grupos sociais vulneráveis um dos mais básicos direitos fundamentais, ou melhor, o seu direito a ter direitos efetivos, inviabilizando o seu acesso ao nosso Sistema de Justiça e, em última instância, o seu ingresso no pacto político-jurídico firmado por meio da nossa Lei Fundamental de 1988. A Defensoria Pública, por sua vez, coloca-se como uma peça-chave nesse cenário, correspondendo à opção vinculativa do Constituinte de 1988 no sentido de criação de uma organização e procedimento voltados à efetividade dos direitos fundamentais para todos, no sentido, aliás, de um acesso universal e igualitário. Por tal razão, a Defensoria Pública, assim como ocorre com o Ministério Público e a Advocacia, integra o conjunto das instituições essenciais ao Sistema de Justiça e assume a condição de uma garantia institucional fundamental.

 

 

 

 

 

 

 

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