Desclassificação em Plenário do Júri – Uma percepção distinta

Por Flávio Rodrigues Lélles

A Constituição da República de 1.988, em seu art.5º, inciso XXXVIII, reconheceu a instituição do Tribunal do Júri, estabelecendo que a lei lhe atribuirá organização própria, mas já lhe assegurando, entretanto, os princípios da plenitude de defesa, do sigilo das votações, da soberania de seus veredictos e da competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Importa para a apreciação da desclassificação em Plenário de Julgamento Popular a análise desse último princípio, ou seja, o da competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

No ponto, é de se ver que a atribuição ao Tribunal do Júri da competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida se trata de uma opção política do constituinte originário da Carta, de modo que se avaliou a necessidade, ou mesmo a conveniência jurídica, de se atribuir às pessoas comuns do povo a apreciação dos fatos que podem caracterizar eventuais crimes dolosos contra a vida.

Isso porque a prática dos crimes dolosos contra a vida, principalmente o homicídio, é uma situação da vida que pode alcançar todas as pessoas, independentemente de condição pessoal, cultural ou sócio-econômica, como nos demonstra, a cada dia, a casuística da vida.
Dessa maneira, se valorou constitucionalmente que os melhores julgadores para os fatos caracterizadores de possíveis crimes dolosos contra vida são as pessoas comuns do povo e não os Juízes de Direito.

Nesse passo, a respeito da desclassificação em Plenário de Julgamento Popular propriamente dita, reconhece a doutrina duas modalidades para tal; a desclassificação própria e a desclassificação imprópria.

A desclassificação própria dar-se-ia quando os jurados, ao responderem certos quesitos que lhe são formulados, decidem que o fato imputado não caracterizaria crime doloso contra a vida, sem, contudo, identificar qual seria o pretenso crime praticado pelo acusado.

Destarte, no caso de uma tentativa de homicídio, os quesitos que, se respondidos afirmativamente, caracterizariam conduta dolosa contra a vida teriam a seguinte redação:
1º No dia 04 de julho de 2006 o acusado X, munido de arma de fogo, efetuou disparo contra a vítima Y, causando-lhe os ferimentos descritos no Auto de Exame de Corpo Delito de fls.?
2º Assim agindo o acusado X deu início à execução de um crime de homicídio que somente não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade, eis que a intervenção de terceiras pessoas impediu que o mesmo prosseguisse atirando?

No entanto, a resposta negativa ao 2º quesito acima, após a afirmação do 1º, ensejaria a consideração de inexistência de conduta dolosa contra a vida, já que não houve início de execução de crime de homicídio, não consumado por força de circunstâncias alheias à vontade do agente, entendendo-se, numa concepção finalista pura, o vocábulo vontade como equiparado a dolo.

Com efeito, a afirmação meramente do 1º quesito, com a negativa posterior do 2º quesito, proporcionaria a desclassificação do fato de doloso contra a vida para outro, que pode ser de natureza criminal distinta, ressalvada a dolosa contra a vida, ou, então, poderia ser considerada pelo Juiz Presidente a inocorrência de injusto penal, seja pela verificação de causas que o excluam ou mesmo de causas exculpantes.

De igual sorte aconteceria no caso de homicídio consumado, quando os jurados infirmassem a ocorrência de conduta praticada com dolo direto ou mesmo com dolo eventual:
1º No dia 04 de julho de 2006 o acusado X, munido de arma branca, canivete, desferiu um golpe contra a vítima Y, causando-lhe os ferimentos descritos no Auto de Exame de Corpo Delito de fls.?
2º Esses ferimentos por sua natureza e sede foram a causa eficiente da morte da vítima?
3º O acusado, com essa sua conduta, quis a morte da vítima Y?
4º O acusado, com essa sua conduta, assumiu o risco de matar a vítima Y?

Nesse caso, a resposta afirmativa aos dois primeiros quesitos, seguida de resposta negativa aos dois últimos, caracterizaria, também, desclassificação do fato imputado de doloso contra a vida para outro de natureza criminosa diversa, desde que não seja dolosa contra a vida, podendo ser tal fato considerado até mesmo como um fato justificado ou inculpável.

O que importa com a ocorrência da chamada desclassificação própria é que o julgamento do fato sai da atribuição do Conselho de Sentença, visto não mais se tratar de crime doloso contra a vida, art.5º, inciso XXXVIII, alínea ‘d’, da Constituição da República de 1.988, disposição constitucional disciplinada na legislação infraconstitucional expressa no § 2º do art.492 do Código de Processo Penal.

Registre-se uma vez mais que, diante da desclassificação própria operada, cumprirá ao Juiz Presidente analisar às inteiras o fato sob julgamento, ou seja, avaliar as teses defensivas apresentadas, seja no exercício da autodefesa, seja no exercício da Defesa Técnica, abrangidas pela plenitude de defesa, e assim absolver ou condenar o acusado, ficando livre para, de forma fundamentada, decidir segundo o convencimento que formar, só não podendo fazê-lo para entender caracterizar-se o fato imputado como crime doloso contra a vida, já que o órgão constitucionalmente competente para tal, o Corpo de Jurados, decidiu que disto não se tratou.

O problema existe quando se está diante da hipótese que a doutrina convencionou chamar de desclassificação imprópria, o que quer parecer que, por se tratar de caso distinto da desclassificação própria, surgiu a necessidade de denominar de maneira diversa as hipóteses, e o que é pior, estabelecer conseqüências jurídico-processuais disformes para ambas.

Ocorreria a desclassificação imprópria quando os jurados decidissem pela ocorrência de um delito específico, diverso dos dolosos contra a vida, ao invés daquele imputado inicialmente na Denúncia, reconhecido na decisão de Pronúncia e articulado no Libelo.

Nesses casos, o Conselho de Sentença remanesceria competente para apreciar questões outras, não obstante ter afirmado se tratar o fato imputado ao acusado de crime diverso dos dolosos contra a vida, em total afronta ao dispositivo constitucional que estabelece a exclusividade da sua competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, art.5º, inciso XXXVIII, alínea ‘d’, da Constituição da República de 1.988.

Nesse sentido, colhe-se da doutrina especializada de Adriano Marrey e Alberto Silva Franco, in verbis:
Se a defesa houver sustentado na contrariedade ao libelo, ou então, em Plenário, a tese da desclassificação do fato criminoso, deslocando-o do homicídio doloso para o culposo, é evidente que o juiz, após a votação dos quesitos relativos ao fato principal (materialidade e autoria) e à letalidade ou tentativa, se for o caso, deverá formular quesito referente à tese já mencionada. A resposta positiva dos jurados significará o reconhecimento da desclassificação do fato criminoso, em face da classificação contida na pronúncia e, posteriormente, no libelo. Cuida-se, no caso, da chamada desclassificação imprópria, visto que os jurados, ao darem resposta favorável ao quesito defensivo, além de excluir o delito anteriormente debitado ao acusado, formulam uma nova moldura penal. Com isso, deve o Conselho de Sentença prosseguir na votação de quesitos, salvo os incompatíveis com a nova figura penal resultante da decisão do Conselho de Sentença. Isso significa que deverá manifestar-se sobre teses defensivas que não contrariem a nova qualificação jurídica e sobre o quesito obrigatório sobre atenuantes, sem prejuízo ainda da votação de questionamento sobre crime conexo. Conforme enfatiza Hermínio Alberto Marques Porto, “a desclassificação imprópria entrega ao Juiz-Presidente condições para julgar dentro da esfera de competência do Juiz singular, mas condicionado à definição de um crime fixado pelos Jurados. Tal fixação como que comporta regra de modificação da competência originária do colegiado popular, regra que resulta em indicação de nova competência que permite aos Jurados prossigam votando o questionário e no tocante à figura nova que definiram, figura que, isoladamente e na independência da decisão desclassificatória operada pelo colegiado leigo, não seria encaminhada ao Júri”.

A hipótese se concretizaria, na prática, pela decisão do Corpo de Jurados no sentido de que o acusado praticou o fato por meio de uma das modalidades caracterizadoras da culpa penal; imprudência, imperícia ou negligência:
1º No dia 04 de julho de 2006 o acusado X, munido de arma branca, canivete, desferiu um golpe contra a vítima Y, causando-lhe os ferimentos descritos no Auto de Exame de Corpo Delito de fls.?
2º Esses ferimentos por sua natureza e sede foram a causa eficiente da morte da vítima?
3º O acusado deu causa ao resultado morte por imprudência no manejo do canivete? (ou imperícia ou negligência, conforme fosse sustentado pela Defesa).

Conforme visto, há os que defendem que no caso de desclassificação imprópria competiria ao Juiz Presidente tão só a aplicação da pena relativa ao fato delituoso reconhecido pelos jurados, não se lhe permitindo a análise das teses defensivas apresentadas, tarefa esta que caberia ao Conselho de Sentença.

Mas, ainda assim, as referidas teses defensivas passíveis de apreciação pelo Corpo de Jurados seriam somente as compatíveis com a nova figura penal que teria sido definida anteriormente, no caso, o homicídio culposo.

Todavia, além de esse entendimento possuir o inconveniente de violar objetivamente a regra competencial do Tribunal do Júri, específica para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, art.5º, inciso XXXVIII, alínea ‘d’, da Constituição da República de 1.988, eis que, mesmo depois de ter afirmado não se tratar o fato imputado de crime doloso contra a vida, remanesceria competente para decidir acerca das questões aludidas, ou seja; teses defensivas compatíveis com o homicídio culposo, crimes conexos e atenuantes, a aplicação de tal posicionamento pode, ainda, propiciar afronta expressa ao também constitucional princípio da plenitude de defesa, art.5º, inciso XXXVIII, alínea ‘a’, da Constituição da República de 1.988.

É que, a partir do entendimento que se reputa absolutamente razoável, no sentido de que as teses desclassificatórias precederiam outras teses, ainda que absolutórias, visto que primeiramente o Tribunal do Júri necessitaria afirmar sua competência, antes de se pronunciar sobre o mérito, percebe-se a possibilidade de que o reconhecimento do homicídio culposo pelo Conselho de Sentença, na chamada desclassificação imprópria, impediria a análise de outras teses defensivas, máxime absolutórias, afrontando-se o referido princípio constitucional da plenitude de defesa.

Assim, o que se verifica é que há um equívoco na percepção dos que querem distinguir, quanto aos efeitos, o que identificam como duas espécies de desclassificação passíveis de ocorrer no Plenário do Júri, a própria e a imprópria.

Não é porque se mostram ontologicamente diferentes as hipóteses de desclassificação própria (não há definição do crime que teria sido praticado) e de desclassificação imprópria (haveria reconhecimento de certo crime) que necessariamente os efeitos ou as conseqüências jurídico-processuais de ambas teriam que ser distintos.

Destaque-se que a decisão do Conselho de Sentença que reconhece que o acusado, com sua conduta, deu causa ao resultado morte por imperícia, imprudência ou negligência, significa apenas que não foi vislumbrada conduta dolosa contra a vida, mas nunca poderá significar que o fato imputado configurou crime de homicídio culposo, uma vez que ao Tribunal do Júri não se deferiu constitucionalmente competência para tomar esta decisão.

Por derradeiro, o que parece inequívoco é que tanto na hipótese da chamada desclassificação própria quanto no caso da desclassificação imprópria o que se pode efetivamente extrair da decisão dos jurados é que a conduta imputada ao acusado não foi dolosa contra a vida, e só isso, devendo-se, assim, ser considerada finda a competência deste órgão, submetendo-se o fato à apreciação do Juiz Presidente, que tanto numa hipótese quanto na outra terá a possibilidade de apreciá-lo livremente, de acordo com seu convencimento motivado, podendo absolver ou condenar, tão só encontrando limitação na impossibilidade de entender tratar-se dito fato de crime doloso contra a vida, do mesmo modo e pela mesma razão que ao Júri não se deferiu constitucionalmente a possibilidade de decidir, de forma definitiva, pelo homicídio culposo.

Flávio Rodrigues Lélles
Defensor Público junto ao II Tribunal do Júri de Belo Horizonte.
Professor de Direito Processual Penal
Pós-Graduando em Ciências Penais

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